Pandora pandêmica

Glauco Gonçalves e Estêvão Parreiras

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Quando foi pra se trancar em casa, naquele meio de março, a crença crua era que duraria quinze dias, depois retornaríamos ao que hoje já se sabe ser irretornável. A emergência daquele período-prazo de distopia deu em mim a inquietação própria da poesia. Assim começava esse exercício-excremento em forma de micro textos.

A imaginação como mero recolhimento de impressões do que já era o mundo, mas ainda não estava. Nuances de descompassos espaço-temporais.

O que une esses textos é a retirada sádica e cínica, por vezes satírica, de porções deslocadas do real e realocadas nessa criptografia em que a página permite tornar o mundo em estado de letra. Letárgico. Trágico. LetRárgico.

Quarenta micro-necro/contos-crônicas. Trata-se de um mero mote, fetiche numerológico, estratégia editorial-publicitária e também por se tratar de uma nova contagem de um tempo que não passa.

Precisão do imprevisível.

[...]

SOBRE VERMES, VÍRUS E PARASITAS

/ micro-conto, n.7

No laboratório de genética e tecnologia mais HI TECH do planeta um grupo de cientistas finalmente descobre a cura para o vírus.

A fórmula para resolver o problema foi encontrada numa biblioteca velha, em uma série de livros escritos por um alemão no século XlX, lá os cientistas da genética puderam ler:

“A vacina para o vírus é a eliminação total dos parasitas e vermes que controlam o capital.”

URBANIZAÇÃO MEDIEVAL PÓS-MODERNA

/ muro-conto n.37

Finalmente todos os condomínios fechados foram abertos.

A cidade mimetizada em condomínio.

Quem diria que a tecnologia usada nas cidades da Idade Média seriam a cara da pós-modernidade e do pós-vírus em grandes metrópoles do subdesenvolvimento.

“Medieval hitech”. Diziam de boca cheia os urbanistas e arquitetos abraçados aos especuladores imobiliários. O velho discurso sobre o novo.

Por se tratar de um projeto humanista, como todo bom projeto urbanista, os lados de fora do muro foram pintados e ou grafitados por artistas famosos, com temáticas engajadas.

Curadores de arte urbana teciam comentários perspicazes, com análises sofisticadas no dia da inauguração daquilo que chamaram de “o maior painel de arte urbana do mundo”! Maior e mais representativo do que os grafites que compõe o “painel” que separa Israel da Palestina.

O Instituto Itaú e o Instituto Moreira Sales financiaram as pinturas e grafites que nos colocaram no centro da arte urbana do pós-século XXI.

Afinal a arte sempre foi um tema caro para os bancos!

O presidente do Instituto Itaú disse no dia da inauguração: “a arte cura!”

Os arquitetos e urbanistas brasileiros voltaram a ler a obra de Gilberto Freire e usá-la feito fosse uma cartilha. As adaptações eram restritas à escala: a cidade intra muros uma imensa Casa Grande.

Os contratos de trabalho dessa nova urbanidade medievalesca são mais duradouros, combatendo a instabilidade dos empregos, disseram eles.

Isso porque o processo para adentrar a cidade intra-muro consiste em pegar a fila do lado de fora do muro lindo e colorido com grafites engajados. Isso pode durar dois ou três dias.

Depois de apresentar os documentos do contrato de trabalho firmado na alfândega urbana as trabalhadores e os trabalhadores ficam alojados por quinze dias em um Centro de Detenção Provisória Anti-contágio em regime de quarentena (finalmente os/as trabalhadore(a)s pobres passaram a fazer quarentena!).

Os turnos duram de 30 a noventa dias em média, podendo ser de 15 dias ou de até 180 dias.

Obviamente os quinze dias de estadia obrigatória no Centro de Detenção Provisória Anti-contágio são descontados do salário.

Mas todo muro que é sólido desmancha no ar.

Oscar Niemeyer sabia que o concreto armado é dado a fissuras.

Carlos Mariguella sabia que além do concreto outras coisas podiam ser armadas.

O propósito de todo muro é cair.

Uns sonham em virar chão, passagem que num instante vai do vertical ao horizontal, onde permanece virando outro. Muro que muda, se desloca, se torna chão. Da interdição da sua condição vertical dando lugar à passagem, incorporado ao chão.

Todos os muros, mesmo os maiores acabam em alguma parte do céu. O céu nunca é sólido, um muro sempre é sórdido.

O muro impedia de entrar, mas o que ninguém levou em conta era que ele também impedia de sair.

Quando os do lado de fora se negaram a entrar, o muro que protegia começou também a sufocar.

Sem ter quem trabalhasse o projeto urbano medieval pós-moderno começa a desmoronar.

O muro caiu de pé.

Glauco Gonçalves dedica-se às pesquisas das degenerescências e derivas urbanas. Tem trabalhos dedicados ao fim do trabalho. Mergulhador de escombros urbanos. Garimpeiro de te(n)sões da vida cotidiana.

Quando não pode fazer nada disso é professor da Universidade Federal de Goiás e doutor em Geografia Humana pela USP.

Publicou, entre outros, os seguintes livros: "A crise da cidade em jogo: o futebol na contramão nas ruas da Penha" (2014); "Do lúdico ao lucro: elementos para compreender como a FIFA ganha dinheiro" (2018) e "Da imagem da cidade à cidade como imagem: do espaço abstrato à abstração do espaço na sociedade do espetáculo".

Estêvão Parreiras Pereira(Pouso Alegre, 1993) vive e trabalha em Goiânia (GO), bacharel em Artes Visuais pela Faculdade de Artes Visuais da UFG. Trata de suas reflexões enquanto artista, observando sua relação com o ambiente à sua volta, onde os lugares afetivos, a delicadeza do fazer artístico e a prática salutar do desenho são questões presentes. Os pensamentos poéticos surgem nos trabalhos em formas de manchas, caligrafias, rabiscos e garatujas, entre outros...