Eliakim Oliveira*
Freud não recomendava que o analisando saísse por aí contando como foram as sessões de análise — como aquele sujeito que contava aos amigos que tinha descoberto uns recalques (como quem tropeça em cascalhos), que a psicanalista lhe dissera que sofria de perversão (como se perversão fosse elogio), que sonhara que tinha dormido com a própria mãe (como se a mãe fosse uma amiga), e assuntos afins. No entanto, tem vez que, em geral por anedota, não me contenho. Sempre digo a ela que é difícil ser analisado remotamente, como tem sido, porque minha vida externa é que é rica, e a interna, sinto dizer, muito pobre. Falar de mim mesmo e do que sinto é difícil porque me interessa muito mais o que vejo, o que está fora de mim e na contramão de meu olho — de maneira que não sei bem o que é angústia e me incomoda mais a desordem dos acontecimentos que este ou aquele sentimento de causa enigmática. Enigma, eu? Não. Esfinge, sim — mas sem mistério. Quebra-cabeça? De duas peças: a coceira e a unha que coça (ai, que delícia...). Sou um problema resolvido — sem deixar, contudo, de ser um problema. De modo que o enfadonho eu e a primeira pessoa — e era a isso que eu queria chegar — me aborrecem muito.
Resta, então, falar em terceira pessoa — o que não deixa, no entanto, de ser um embuste. Lembro quando reclamavam de José Lewgoy (lembram-se dele em Terra em Transe? E em Fitzcarraldo?) por falar apenas de si mesmo, até que, quando não o suportavam mais, advertiam-no ao telefone:
— Mas Lewgoy, você só sabe falar de si mesmo? Eu, eu, eu... Não tem outra coisa pra falar?
Ao que, no próximo telefonema, Lewgoy corrigia a insistência:
— Tenho sim: José Lewgoy está triste, José Lewgoy está estressado, José Lewgoy... — trocando a primeira pela terceira pessoa.
Então, resolvi fazer isto: falar com ela em terceira pessoa — a voz narrativa por excelência: “era uma vez, um lobo e um cordeiro...” Mas, se as narrativas se desenvolvem bem quando se referem à vida externa, surge o problema de que, não havendo muitos acontecimentos fora de mim — ando, sim, bastante, mas à roda de casa —, fica difícil ter do que falar. Confinado, você há de concordar, pouca coisa acontece. O café fervido? O carro do ovo? A mensagem tardia da antiga amada? Isso tudo tão banal que, quando acontece, nem chega a ser acontecimento. Pois resolvi falar dos sonhos, sim, porque sempre esquisitos — se fazem parte da vida interna, mantêm a ilusão de parecerem, enquanto acontecem, composições da externa (Pascal notava, com argúcia, o quão a vida parece um sonho um pouco menos inconstante). Os sonhos não deixam de ser narrativas, não é verdade? Para alguns, inclusive, uma narrativa escolhida, conscientemente, para contar a própria vida — me recordo, aqui, de Fellini e do The book of dreams, onde estava desenhado aquele helicóptero a partir do qual Marcello Rubini, em La Dolce Vita, pedia o telefone das mocinhas que tomavam sol sobre a cobertura do prédio. Cena tão real quanto onírica — de fato, o registro de um sonho de Fellini. Mas isso não vem ao caso... O caso é que... Do que eu falava? Sim, claro, contar os meus sonhos. O caso é que, quando eu disse a ela que sonhara que o sapo saltara sobre um revólver recém-usado e morrera com o calor do cano, ela me disse:
— O sapo é você.
Ri. Vejam que, mesmo falando do sapo, topei comigo. A interpretação deveria estar correta. Confio em minha analista, porque sei que sempre fui o sapo a pleitear o trono de príncipe. Ri e muito, mas confesso que não tinha a ver apenas com o sapo ser o eu do qual eu fugia. É que, naquele momento, reproduzíamos, ao avesso, um conto de Fernando Sabino, em terceira pessoa (se bem me lembro), em que o analisando dizia ao analista que o gato com que sonhara era ele próprio, ao passo que o analista discordava e insistia, dizendo-lhe que o gato era ele, e não o analisando. A discordância resultou em uma briga em que analista e analisando disputavam, incansavelmente, quem era o gato:
— O gato sou eu!
— Não! O gato sou eu!
— Eu!...
Então, quando ela me disse — Você é o sapo —, eu inevitavelmente respondi:
— Não, o sapo é você!
E decerto ela não entendeu, e insistiu:
— Não, Eliakim, o sapo é você.
Ao que novamente lancei a ela o sapo, e ela, o sapo a mim, e ambos persistíamos com veemência em lançar o sapo um para o outro... De tal modo que, quando já nos aproximávamos da testilha derradeira — ela esperava fincar o sapo em minha cabeça e eu queria que ela engolisse o sapo dela —, confessei-lhe, baixando a guarda e ensarilhando as armas, que tínhamos reescrito um conto de Fernando Sabino, mas pelo contrário, e lhe pedi desculpas por essa minha insistência em permanecer nas narrativas em terceira pessoa — e nunca falar diretamente de mim mesmo, mesmo que isso, ao dar conta da crônica, custe a sessão de análise.
São Paulo, 26-9-2020, durante a pandemia de coronavírus