Contrata-se cronista, paga-se bem

Eliakim Oliveira*

Nesta primeira publicação, queria escrever uma crônica não minha, mas de Rubem Braga, na qual eu pudesse dizer, em alto e bom som, que ousara imitar o Cronista nisso de compor uma crônica lírica — por exemplo, se pudesse me pôr a escrever sobre o conde e o passarinho, ou sobre uma antiga Copacabana (mal conheço a de hoje), ou sobre um cronista que olha para o céu e vê aquelas nuvens vagabundas a que chamam cirros... Se assim escrevesse, então poderia eu dizer, como sempre quis, que ousara, tal como Drummond um soneto, compor uma crônica de Rubem Braga. Melhor: compor uma crônica de Rubem Braga através da qual eu pudesse ver, sem quartetos nem tercetos, um perfeito soneto. Mas sem revisão, se eu merecesse esse privilégio, de ousar uma crônica de gênio — que pulasse sobre a folha em branco, ainda suja, quase psicografada, que eu escrevesse à mão esquerda, e com a direita presa à têmpora, esperasse que Rubem murmurasse, aqui dentro, o próximo parágrafo. O velho Braga advertiria, como certa vez advertiu a Ziraldo, que eu não viesse escrever sobre pássaros, porque não sei o que é um sabiá, pois sabiá não pia, como supus, voltado para cima, e que isso nem é caso de conversa, porque importante mesmo é que finalmente Rubem, onde quer que estivesse, teria encontrado a mulher do Nunes, e que ela é linda como descreviam, e jovem, sempre jovem, como Rubem sempre quisera. De lá de cima, de onde anunciasse a crônica que eu escreveria, veria três vagabundos (esperaria ser um deles), cada qual, se em casa, confinado, se na rua, de máscara, sonhando com um dia (quem sabe?) voltar à praia:

— Lá estão eles de novo, sonhando com a praia que sempre tive — pensaria o Braga, e depois viraria para outro lado, sentaria e pensaria em outra coisa, como Deus costuma fazer. Talvez pensasse no pescocinho alongado, como uma escova de dente, e na cinturinha fina, como um ponto de encontro, daquela Danuza que hoje não existe mais. Aliás, pensaria em tudo que não existe mais — e se decepcionaria com este cronista que vos escreve, incapaz de lembrar-se do essencial da vida, amante que é da superficialidade e muito contrafeito quando interpelado sobre as grandes questões da existência:

— Quem sou? Filho do Arnaldo. De onde venho? Do Jabaquara. Para onde vou? Santa Cecília.

E essa crônica então... fracassaria. É que eu não poderia dizer, como Braga sugeria, que nunca me esqueço de uma mulher bonita — porque (ai de mim e como sofro) me esqueço, sim — ao contrário do Cronista, em cuja cabeça viviam, em comunhão de bens, todas as mulheres bonitas. Bem lembrado: tão importante a memória para o cronista, e esta minha, tão confusa, não reteria as belas coisas que uma crônica, como aquela do Braga, tem de reter. Como quando, na história que vou contar, à maneira do terrorista antilírico, fiz explodir a possibilidade do gozo, fosse o literário ou o espasmódico. Muito tempo atrás, no bar, a quarta ou quinta garrafa, ela me diz que aquele fim de tarde estava lindo. Olho ao horizonte. Realmente. Aquelas nuvens alargadas, molengas, espremidas, que Rubem Braga lembrou, como eu vos disse, que se chamam cirros (tomem nota, pois insisto: cirros), e o sol tornando-as alaranjadas, de tal maneira a figurá-las qual labaredas espichadas, uma se afastando da outra como que por repulsa, e o pôr do sol, vocês imaginem, iluminando mocinhas e mocinhos, roupa de verão, todos suados, calabresa com frango, a gelada logo à frente, ela me diz:

— Ai, que tarde bonita...

E digo a ela:

— Bonita mesmo, para namorar.

Ela me olha pelo rabo do olho, como se tivesse tido ideias. Mas não me demoro:

— Namorar, sim, mas não você — e vejo o sangue do lirismo percorrer, num filete, da calçada ao meio-fio.

Se eu soubesse que hoje estaria no sexto mês de confinamento, teria dito: namorar você, meu amor, só você.

De modo que, feitas as comparações, não deu crônica de Rubem Braga. Mas deu crônica.

São Paulo, 23-9-2020, durante a pandemia de coronavírus

*Eliakim Oliveira é autor de Polióptico (São Paulo: Córrego, 2020)