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Kelly Koide
Pisca os teus lábios e corrói as entranhas do meu riso.
A voz vinha de um sonho. E o sonho estava dentro do mar ou do ônibus. Pouco importava para onde iam aqueles dois, aquelas vozes: a velocidade não era compatível com um olhar atento aos detalhes: folhas crocantes de outono acumuladas nos cantos, um tatu-bola que atravessava uma rua em zigue-zague, duas gotas de transpiração arbórea antes de soltar o fruto: e, por isso, ela se viu olhando para o céu, onde cremosas nuvens surrupiavam uma lua em humor de esconde-esconde.
Tua cara tá toda molhada...
E as tuas frases, só pra variar, estão todas adjetivadas, Tê.
Deitada no escuro do quarto, quieta e calada pelo gosto da noite. Tereza e Carlos não se conheciam não ainda. Se cruzado por uns corredores, vá lá, quiçá; mas conhecer, mesmo, nunquinha. Tereza deitava, jogada na cama, os longos cabelos esticados pra cima, como a sobrevivente de um naufrágio sendo lambida pela marézinha rasa. Tereza era cuspida pra fora do sonho, devolvida à superfície junto com a espuma dos refluxos marinhos. E, com ela, duas águas-vivas furta-cor, arco-íris que cintila e queima mesmo dentro das pupilas.
Água-viva, em francês, se diz meduse. Ela perde na leveza e na poesia pra ganhar em poder petrificador.
Abriu os olhos. Por que ela nunca conseguia lembrar-se das frases sem sentido dos sonhos? Estava ainda no ônibus, e o ônibus ainda ia pro mar, e o caminho do mar passava por dentro de túneis intermitentes que amplificam os sons. Mas as vozes viraram farelo.
Um outro som, do telefone, surgiu pouco antes que a voz grave do outro lado da linha, que falava com outras pessoas, se interrompesse, fazendo um gesto com a palma da mão e dizendo:
Foi mal, Tê, não deu pra falar com você aquela hora. Mas essa noite vai ter um show, vem aqui pro centro, a gente conversa. Tô indo pra Nova Iorque e queria te ver antes de ir.
Pra Nova Iorque?
Amanhã. Então vem!
Tereza não tinha mais treze anos; ela tinha treze mil quilômetros entre o trópico de Capricórnio e o Brooklyn. Carlos tinha crescido sua idade e, junto com a distância entre eles, a geografia era um detalhe naqueles corações de vinte e seis anos. Porque aquele instante em que eles não se conheciam não durou muito em suas vidas, e logo viraram melhores amigos.
Ela foi até o centro de São Paulo, como que obedecendo àquela voz, como se ele tivesse dado uma ordem tácita, clandestina, uma ordem sem corpo e sem baile, uma ordem com doçura. Viu uma silhueta comprida, o cabelo loiro escuro. Mas como pra ter certeza, procurou a mesma mão que ela não viu no seu ombro, alguns anos antes. Ali, quase embaixo do Minhocão, aquela mão carregava uma enorme caixa com as mãos de um outro cara. A mão dava ordens, a mão ria e também reclamava enquanto equilibrava um cigarro colado no canto da boca. Para Tereza, o medo de tocar aquela mão era grande, medo do arisco. Seguiu, enfim, as quatro mãos por um corredor grande, onde paletas de cinza e de cimento queimado estavam por toda parte, e os fios e canos (tudo tão reto!) só fazia aumentar o silêncio do corredor. Um cachorro não estava previsto para aparecer, muito menos ali, mas apareceu. E interrompeu os olhos de Tereza, que continuavam seguindo Carlos enquanto desviavam da curiosidade do cão; enquanto improvisava qualquer coisa em gestos incoerentes. Perdê-lo de vista era largar uma ideia no meio. E Carlos sumiu.
Todo mundo procurava o Carlos no meio da organização, e Tereza só voltou a vê-lo embaixo de uma tenda na República. Por conta daquele frio paulistano, ela usava umas calças de veludo roxo. Ela odiava usar calça, mesmo tentando enganar o próprio corpo com tecidos macios. Ainda que infelizes, as pernas foram se aproximando e esbarraram, meio bestas, nas do rapaz de cabelo enrolado que conversava com o Carlos cinco minutos antes. Sem nem mesmo dizer oi, deram uma risada com o canto de olho no rapaz.
Eu dormi com ele ontem e ele mordeu o meu sovaco.
O quê?
Essa coisa de ficar só na língua, pinto, bunda, é tudo muito careta.
E você gostou?
Ele dormiu muito rápido. E roncou.
Digo, da mordida.
Ah, isso. É interessante. No começo, só deu tempo de pensar: quê que é essa dor?, e vi que era o meu sovaco. Tinha tomado umas quatro doses de Boazinha. Sei lá. Quase demorei pra entender. Mas depois achei que rola um lance do inusitado e a dor e a textura.
E eu dei o cu.
Então vai dar pra mim também, Tê!
Tá maluco? Dói muito.
É, eu sei, não dou por nada.
Ela fez um carinho na barba rala dele. Sempre foi rala e escura. Tentou lembrar onde ficava a cicatriz no rosto dele, mas só lembrou que ele gostava de Francesca Woodman. Só dava pra pensar em Nova Iorque naquele momento.
Abriu a bolsa:
Tó. Fiz pra você levar entregou, cheia de reservas, uma pequena gaiola com um ovo dentro.
Teve vontade de perguntar se o surrealismo das afinidades eletivas estava naquela imagem densa ou na possibilidade de afinidades grávidas de futuro. Se calou. Porque era bom estar ali, no final da noite. Tereza não viu o show, não viu o festival acontecer. Parecia evaporar sobre muros e fios elétricos, pelas passagens de um rio de canaleta urbana que agarra a borda de gargalos tênues.
Talvez ela apenas acordasse outra vez, sendo cuspida por mais um sonho. Outra vez na superfície.
Aquele era precisamente o momento da festa em que todo mundo saía pra guardar as coisas, bater um xaveco de última hora. E estavam ali, apenas os dois. Sob uma tenda na rua deserta. Se abraçaram, enfim. E era quase difícil, mesmo depois de se apalparem verbalmente a noite toda. A intimidade do carinho é mais complicada. Já era raso o tempo, no meio da madrugada, e as ruas iam sendo lavadas por caminhões pipa. O asfalto estava tomado por manchas de tinta, intervenção plástica sobre o cinza cru.
Enquanto a água espirrava, os carros ficavam como onças coloridas: as onças de Pollock.
O tempo daquela noite acabava. Ela queria dizer coisas, perguntar se o passaporte dele estava em ordem, se ele estava triste. Falar pra ele se cuidar. Mas isso ele sempre soube fazer: ele sempre foi grande e ficou acordado até mais tarde. As perguntas tendiam para outros absurdos.
Você acha que a profundidade de uma cicatriz dá testemunho da queda?
Nem sempre.
Olha essa daqui no meu cotovelo, é nova.
Eu tô com uma no dedinho.
Você viu que tem pólen na teia de aranha?
Nem.
Tá ouvindo? Esse barulho de mar, na verdade, é a avenida que passa com seus carros nas onças de Pollock.
***
Uma noite quente em que duas pessoas de rosto úmido pedalavam. Nem no ônibus nem no mar, atravessavam a noite urbana embora parecessem mareados.
Riam, pela noite, pelas incontáveis noites. Suados ou não, dando corda no rádio, falando, fazendo nada, sentados na guia de uma inútil rua de paralelepípedos. No carro dele, na mesa de um bar. Aliás, sempre os mesmos três bares, em três esquinas diferentes, onde tudo podia ser dito por aquelas bocas tão criativas que se enchiam de cerveja e fumaça.
Uns anos depois até encontraram uma ilustração para a obsessão que tinham pelo número três: Jules et Jim, tão preto e branco, tão misterioso quanto a Jeanne Moreau pulando no Sena. A mulher imperfeita de rosto de estátua.
Ninguém entendia aquela relação, melhores amigos, tudo fraternal & incestuoso?
Pararam as bicicletas numa grade amarela e pediram licença pra entrar. Dois braços tatuados, seguidos de um rosto que olhava por baixo da aba do boné, abriram a porta. Quase não sorria, mas era simpático, aquele amigo do Carlos. Nem era tarde, mas entrar num estúdio de tatuagem fechado os fazia de novo crianças na casa mal assombrada. Depois da sala, era preciso pular uma janela estilo guilhotina e dar alguns passos por um jardim com um fake plastic flamingo.
Chega aí, a tua mina também pode vir.
Não somos namorados.
Repetiam a frase já quase em uníssono, depois sempre rolava aquele olhar cúmplice, olhos meio apertados em riso, e duas ou três explicações cansadas. Achavam graça; puxa, como esse pessoal é binário, a gente não pode nem ser melhores amigos em paz, dividir nossas intimidades sem trepar.
Como um inseto no cio, a iluminação branca zunia e ia abrindo a sala para Tereza. Uma enorme mesa de madeira ocupava a parte central e quadrada e, em cima dela, pilhas de desenhos feitos à mão pareciam se acasalar ao som do pseudoinseto elétrico. Bem no meio da parede, um varal deixava em suspenso outros tantos desenhos que haviam penetrado na pele de uma multidão de desconhecidos. Olhavam, procurando com curiosidade e atenção, o desenho que Carlos faria. Medo? Talvez, de que ele não gostasse: hesitavam juntos. Ele, com seus dedos batendo de leve nos lábios cheios e entreabertos, mania de gente inquieta. Ela inventava cachos na parte de baixo do seu cabelo, a parte mais lisa cheirando a shampoo de bétula.
Uma outra presença, com outro barulho de bicho, se impôs para ele. Era preto e fungou toda a blusa verde do Carlos, seguindo-o depois de surgir dos fundos da casa sem que ninguém o tivesse visto.
Uma força da natureza, ele sussurrou.
Tereza segurou o riso. Tudo o que ele dizia provocava risos nela (e umas vertigens, às vezes). E ele gostava de ver aqueles dentes bonitos com uma pinta em órbita, rindo pra ele. Ela ria até mesmo quando ele dizia que nunca dariam certo juntos. Aquela relação era boa assim, platônica e à toa. As palavras eram agudas, pinicavam alguma coisa que ela mal sabia onde, e então fingia achar graça mesmo sem entender.
O cachorro puxava e eram dentes insistentes, aqueles a blusa verde dele. Uma amizade se inventou ali; o Carlos sempre fazia amigos, com seu sorriso de um dia de tempo firme. A convite daqueles dentes, voltaram para o jardim. Três bocas: um baseado, um cigarro e um graveto.
Enquanto tem flamingos cor-de-rosa no teu quintal, não posso dormir bem.
O homem tatuado não ouviu fingiu não ouvir? continuou molhando umas hortênsias azuis.
Foram pra casa do Carlos, numa cidade que não lhes pertencia. Uma casa onde ela gostava de passar a noite e se trocar no escuro, na cama ao lado, esperando que ele a abraçasse.
Tê, você consegue realmente esquecer aquele flamingo de plástico?
Já esqueci.
É tão estranho, ele fica lá, em pé, a vida toda. Os flamingos dormem em pé, e é como se ele passasse a vida toda ali, dormindo. Um flamingo suicida.
Você acha que ele sonha, uma coisa assim meio Machado de Assis, em que dormir é uma forma de morrer? Porque, nossa, que jeito de se matar! Fugindo da Flórida pros trópicos pra morrer na praia. Nem isso: pra morrer no fundo de um jardim, dormindo escondido!
Não é lindo, isso?
Certamente mais lindo que a história daquela mulher que se matou dando machadadas na cabeça.
Doidera. Não lembrava dessa mulher.
Cara, sonhei uma semana inteira com essa coisa... machadiana, digamos?
Não, o Machado não escreveria uma coisa assim.
Só consegui parar de pensar sobre isso quando li a Psicanálise do fogo e vi que o Empédocles se atirou num vulcão. Aí comecei a ter pesadelos com vulcões.
O pé esquerdo dele balançava, denunciando uma energia que girava em falso e que saiu da boca dele assim:
A gente vai ter que voltar lá e cortar a cabeça daquele flamingo, Tê. E eu vou pendurar ele no retrovisor do meu carro.
Você tá maluco, Carlos? Aquele cachorro vai latir, nunca vai dar certo.
Um graveto! Gênio. Vamos levar um graveto pra ele. Ou uma bolinha.
Durou. Aquele plano que, por sinal, nunca aconteceu, foi elaborado por horas. E ela ria tanto que suas cordas vocais se espremiam, e ela ficava rouca, e os dentes quase brilharam embaixo da escuridão do quarto. E o mar, de repente, não quebrava mais. Mudo, o quarto aumentou a escuridão e, dentro dela, a mão do Carlos encostou, quase pousou no ombro de Tereza. Perto, pois bem perto do cabelo dela, ele respirava. Ela fechou os olhos e tudo ficou ainda mais escuro. Uma onda se abriu e voltou a quebrar nas pedras. A mão dele desapareceu. E ela só voltaria a vê-la outra vez anos depois, carregando móveis num festival de rua.