***
Caio Souto
Estudar o fascismo é imperativo à compreensão do que tem ocorrido atualmente no Brasil. A ditadura militar, enigmaticamente presente e esquecida em nossa memória recente, esteve longe de ser fascista. Tratava-se de um governo totalitário e deve-se marcar bem a diferença: o totalitarismo ocorre quando um aparelho de Estado passa a reger coercitivamente a sociedade civil; já o fascismo, em certa medida o inverso, ocorre quando as próprias massas conclamam um aparelho de Estado que as reja e, invariavelmente, as puna. É um mecanismo suicida. Talvez nem todos concordem com tal distinção, pois há diversas interpretações possíveis aos termos fascismo e totalitarismo. Contudo, não é esse o objeto desta reflexão, que são pretende falar da dificuldade de desmantelar um mecanismo fascista, pois vem debaixo, ao contrário do totalitarista que é às claras, é evidente, é quase uma obstinação. Como arma no combate ao fascismo que hoje vivemos, buscaremos demonstrar a possibilidade da literatura e da filosofia, manifestações que utilizam a escritura em sua constituição.
Ambos, fascismo e totalitarismo, são, como se sabe, perversos e degenerescentes. A ditadura militar foi um governo totalitário, e não fascista. Por isso foi logo entendida como transitória. Os próprios militares, após um tempo, assumiram que deveria se encerrar, pelo que se entende terem sido eles próprios os primeiros a defender uma "abertura política", atroz cinismo cujos efeitos nos são bem conhecidos. A condição de hoje é bem diversa. Parece estar insculpido em toda parte que devemos nos policiar a nós mesmos, que somos nós os culpados por nossa própria miséria, que não somos suficientemente capazes de uma autonomia que conduza a nós mesmos pelos caminhos tortuosos de nosso espírito. A polícia em tempos como esse é requisitada a agir, o que faz sem nenhum constrangimento pois acredita assim estar contribuindo, qual um instrumento do qual não se pode prescindir, para uma aquietação da animalidade que está alojada em nosso inconsciente, às vezes já desperta, outras prestes a despertar. não somente o poder policial, como demais armas, numa estratégia geral, são acionados nos âmbitos teórico e prático: a psicologia, para impedir que acorde o demônio oculto em nós; o jornalismo, para mostrar o quão perto de nós esses monstros despertos estão; o direito, para punir e nos manter deles afastados. Assim atraímos o poder que nos controla a nós mesmos; nós o requisitamos, e ele se nos mostra cru e cruel.
Já não causa nenhum espanto ver, cada vez mais, incidentes como policiais matando e torturando a sangue frio, aliados a uma crescente criminalização da pobreza, de movimentos sociais e de recorrentes greves das classes trabalhadoras, pouco caso quanto a enchentes e desastres naturais e tantos outros. A dificuldade está em que essa estratégia política da positivação de instituições de controle está entremeada nas mais obtusas instituições: familiar, religiosa, escolar, hospitalar, asilar, penitenciária, abrangendo também leis de trânsito, tráfico de drogas, conflitos entre regiões do país, são para falar do Brasil. Enfim, aquilo contra o que se deve lutar não são propriamente as instituições em si, mas a maneira à qual estamos acostumados a nos posicionar frente a elas, incutida em cada um de nós. É este precisamente o âmbito no qual se deve compreender a ética. Sim, o fascismo é e sempre foi um problema de ética, que é a própria maneira de circular da política. A ética é uma política, pois é a maneira com que os homens fazem, no seu cotidiano, a política: é uma micropolítica.
Entào surge àqueles que não se conformam com a situação atual a seguinte questão: como se posicionar de maneira contundente e combativa frente ao fascismo que hoje vivemos, vez que necessitamos tomar medidas para que, além de apenas não mais sentirmos seus efeitos, possamos suprimi-lo, na direção de outra estratégia política a ser erigida de nossas ações. Bem entendido o fascismo como um problema ético, por conseguinte são poderia haver uma resistência a ele nesse mesmo plano micrológico, ou seja, igualmente ético. Seria possível que a escritura, seja ela literária ou filosãofica, fosse essencial num tal empenho, não como idealização de uma futura sociabilidade, à maneira como o idealismo alemão buscou fundar, no nível da razão especulativa, o futuro Estado moderno que a Alemanha deveria construir, almejando assim uma superação histórica que abarcasse toda a humanidade no seu processo de desenvolvimento, senão como a fundação de um espaço próprio, que não remeteria toto coelo à realidade efetiva.
Quanto à literatura caberia a ela constituir um espaço literário, para usar a expressão usada por Blanchot no título de um de seus livros, dentro do qual a palavra não remeteria a uma realidade exterior, mas à sua própria realidade literária: pois a palavra literária é, segundo ele, essencial, não se reportando a uma materialidade outra que não a sua própria, não dizendo o ser do mundo mas seu próprio ser. Nessa esteira, o papel do escritor não deve se limitar a uma militância no sentido do engagement sartriano em que o autor, devendo reconhecer-se como responsável pela consciência geral de seu povo, deveria se engajar em projetos políticos concretos, dos quais sua obra seria uma fundamentação teórica. A força política da literatura consiste, diversamente, em criar uma outra realidade, ocasionando no leitor frêmitos e inquietações com relação à situação atual que vive, desencadeando ações para além da mera passividade inerte, que culminam, quando relacionadas a outros domínios não apenas estéticos, no condicionamento de transformações concretas e na formação de um contexto novo. Eis o papel político da literatura.
Inobstante sempre ter conservado sua especificidade, a escritura historicamente possuiu sentidos distintos nos diversos períodos que presenciou, metamorfoses que evidentemente se coadunam com mudanças ocorridas nos âmbitos político, econômico e social. Em todo período, há regras que permeiam a prática discursiva e que a enclausuram numa estratégia à qual não pode escapar. Todavia, é igualmente inerente à escritura escavar no seu interior uma torção que enverga suas forças para fora, à qual convém justamente chamar potência do fora. Tal disposição para fora da linguagem, que é a própria fundação da literatura, são pode ser constituída no momento em que se trapaceia com a língua, como disse Barthes em Aula. Toda língua, segundo ele, impõe ao falante suas regras discursivas, que estão a serviço de um poder, tornando-o um escravo da língua, que é um código gregário de circulação do fascismo, e um mestre a escravizar aquele a quem fala. A literatura, inserida nesse jogo, é justamente a conquista de uma abertura que dribla tais regras, sem no entanto aboli-las: é portanto uma trapaça.
É que a literatura não está isenta de tais regras. são podendo se apresentar como linguagem, e isso revela o paradoxo com o qual somos conduzidos a nos defrontar, sejamos escritores ou leitores. Há, como disse Foucault em A vida dos homens infames, uma ética imanente à literatura no Ocidente consistente numa discursificação (mise-en-discours) do cotidiano: a literatura é a que mais se aproxima do inaudito, do secreto, descendo ao detalhe do detalhe e revelando-lhe sua insuportabilidade. Subsumida à estratégia política própria aos nossos dias, a literatura é, no entanto, irredutível aos outros domínios discursivos e não-discursivos, compondo sua força de subversão do real sem deixar de conservar sua essência. Um determinado momento histórico se constitui pela interpenetração de muitos domínios heterogêneos, entre os quais a literatura. Guardando cada um sua diferença, são passíveis de afetar e ser afetados uns aos outros. Assim, o texto recolhe elementos extraídos do real para compor sua outra realidade, que, igualmente, oferece elementos para a transformação efetiva do real.
Se há, porém, mecanismos políticos que impedem tal interpenetração e afetação, são necessários outros instrumentos e práticas, não mais somente estéticos, que os rompam. Nesse âmbito, a literatura se vê nuamente de lado, como um invólucro débil e estéril. Parece estarmos aqui diante de um impasse. Contudo, se uma obra de arte efetivamente não pode, por si são, romper as linhas duras de um tecido social qualquer, é ela a mais apta, por estar mais próxima do cotidiano em seus mínimos detalhes, a oferecer ferramentas a suscitar uma intervenção, pois é ela também quem irá revelar quais são os domínios que mais clamam uma ação prática, dando-lhes melhor visibilidade. Nesse sentido, a literatura assume um caráter ativo, adquirindo função política e possibilitando não são uma melhor elucidação do real, mas uma transformação material.
Traduzir isso para ações concretas nem sempre é fácil. Se tomarmos como exemplo o da polícia enfrentando estudantes nas universidades ou arbitrariamente decidindo sobre as vidas de muitas pessoas, em geral dentre as classes menos favorecidas, o que infelizmente deve continuar a ocorrer noutras situaçõess diversas, é provável que não haja nenhuma ação imediata possível contra eles. Noutros tempos, muitos intelectuais deixaram, quando puderam, suas nações. não é esse o caso atual do Brasil. Parece que vivemos um período no qual não é mais necessário, à estabilidade da estratégia política atual, esse exercício declarado da coerção. Daí o termo provocante: microfascismo. Difícil desconstituir ou mesmo dele falar, ainda que nos circuitos acadêmicos, uma vez estando ele disseminado em domínios que pouco comumente possuem uma respeitabilidade filosófica.
Qual tipo de filosofia será então necessário produzir que, tal como a literatura, desça ao detalhe e lhe denote sua excelsitude, que sem ela permaneceria invisível, senão sua ignomínia? A resposta seria algo como: uma filosofia que, enquanto usina de conceitos, produza revezamentos abstratos entre práticas distintas, tornando possível, igualmente, uma ação prática, aliada à ação teórica que é sua tarefa fazer. Entre tais práticas estarão a literatura e outros domínios estéticos, a ciência, a política, a economia: será o papel dessa filosofia realizar a topologia do pensamento atual, ou também sua cartografia, respondendo aos fascismos que se agenciam no contexto social em que ela tem lugar. Deve se ocupar, em suma, do plano de imanência do qual ela própria é fragmento, demonstrando as relações possíveis entre tudo que pertence à natureza em seu caráter cosmológico e, mais que isso, incitando ações práticas que produzam tais embates, ou melhor, tais agenciamentos, termo do cunho de Deleuze e Guattari. Essa filosofia será já o corpus desse engendramento incessante de agenciamentos.
Voltando os olhos ao nosso período atual, admitido não sem rancor como fascista, diríamos que ambas, literatura e filosofia, dele não se destacam, mas devem constituir contra as estratégias de poder atuais, armas e utensílios capazes de produzir intervenções no âmbito político: ao limite, elas já são uma política, já são uma ética. Ansiosas em revelar detalhes da vida cotidiana, seja em sua beleza, seja em sua monstruosidade, incitam-nos a agir, formando com as outras práticas sociais um mesmo e único continuum: eis o incessante jogo do qual não podemos nos libertar, pois somos justamente suas engrenagens. A literatura e a filosofia produzem, cada uma à sua maneira, ferramentas das quais podemos nos servir para enfrentar a batalha cotidiana contra a sujeição que o poder sobre nós precisa exercer, segundo a maneira como ele hoje circula.
A situação atual do Brasil não encontra similitude com o nazismo ou o fascismo históricos, nem parâmetro comparativo com a ditadura militar, sequer um desdobramento a partir das condições de possibilidade neles configuradas. O momento atual é único, como qualquer outro. Estamos nele, vivendo e tendo a certeza de que muito há a ser feito contra os adeptos do "fim da história". Certamente há os que divergem desta interpretação. Que assim seja, desde que, do entrelaçamento positivo de heterogeneidades, haja a possibilidade de nascer uma nova vida política, a fulguração de uma nova sociabilidade, pois os tempos não são bons.
Eis um sentido possível à utopia.